O Artigo 196 da Constituição Federal (CF) prevê a saúde como direito do cidadão e dever do Estado. Em outras palavras, pode-se afirmar que a saúde no Brasil, como um todo, e no sentido mais amplo, aquele contido na definição adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo enunciado afirma “é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”, é exclusivamente pública e plenamente abrangida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como os itens seguintes, até o Artigo 200 da CF, e suas leis regulamentares o reforçam.
A falsa dualidade entre saúde pública e saúde privada se explica, no entanto, pelo fato de que quando surge o SUS, com a promulgação da Carta em 1988, o Estado não possuía a estrutura necessária para dar conta da gama de atribuições definidas, ainda mais considerando o tamanho da população brasileira e a extensão territorial do País. Por essa razão, foi introduzida, no texto constitucional, a possibilidade de entidades privadas participarem do sistema, suplementarmente.
Assim, parte das consultas, dos exames, do atendimento ambulatorial e hospitalar foi mantida com as instituições privadas, operadoras de saúde de mercado – cuja estrutura já vinha se consolidando há mais de 20 anos – e autogestões em saúde – entidades sem fins lucrativos, como fundações ligadas a grandes empresas, associações de categorias de trabalhadores e cooperativas.
Acontece que há uma contradição nessa lógica em que empresas de mercado fazem parte, ainda que suplementarmente, do SUS, pois se saúde é um direito fundamental e deve ser garantida de forma integral e equânime, não pode ser encarada como mercadoria.
É compreensível que nos primeiros anos da implementação do SUS, a partir da regulamentação pela Lei 8.080/91, a participação de empresas com fins lucrativos não pudesse ser vetada da noite para o dia, sob pena de causar o colapso do sistema, porém, era de se esperar que, com o passar dos anos, o sistema fosse fortalecido pelos governos nas três esferas – União, Estados e municípios – e, com o tempo, a participação das empresas fosse sendo reduzida, mas, ressalvadas raras exceções, ocorreu exatamente o contrário.
O financiamento anual do SUS atualmente é da ordem de R$ 300 bilhões, porém, especialistas avaliam que deveria ser o dobro. Ainda assim, as atribuições a cargo exclusivamente do Estado, tais como vigilância sanitária e epidemiológica, controle da qualidade da água e da alimentação, campanhas de vacinação, bem como a maioria dos procedimentos de alta complexidade, o programa de Saúde da Família, entre outros, apresentam desempenho altamente satisfatório, com a melhora dos indicadores de desenvolvimento social do País ao longo dos anos, mas a rede de atendimento não se expandiu na medida da demanda e a saúde suplementar atende, ainda hoje, em torno de 22% da população brasileira ou 47 milhões de pessoas.
Outro dado a evidenciar é o porcentual de recursos aplicados pelas operadoras de mercado no atendimento, correspondendo a algo em torno de 60% na média histórica. Ou seja, o investimento do setor público representa 40% para o atendimento de 78% da demanda.
O mais preocupante é que, para além do subfinanciamento crônico por parte das esferas governamentais, a perspectiva é de que, a partir da Emenda Constitucional – EC 95, do teto dos gastos, em vigor desde 2018 – que mantém os valores de investimentos da União congelados por 20 anos, apenas sendo corrigido pela inflação anual, levando-se em conta o crescimento populacional -, os recursos da saúde sofram redução, ano a ano, por todo esse período, podendo comprometer a sustentabilidade do sistema.
Diferentemente, as autogestões de saúde, por serem entidades privadas sem fins lucrativos, não apresentam essa contradição. São as caixas de assistência de trabalhadores vinculados a uma empresa específica, associações e cooperativas, ou programas de assistência à saúde de empresas para seus funcionários e dependentes, operados por elas próprias, por meio de sua área de pessoal, as chamadas autogestões por RH.
Além de não visar ao lucro, essas modalidades de operadoras têm todo o interesse na promoção e na prevenção da saúde de seus empregados ou associados, pois no caso das empresas que normalmente patrocinam parte do custeio dos planos, quanto melhor for feita a gestão dos recursos e da própria saúde de todos, menor será seu desembolso. Por outro lado, seu quadro funcional gozará de um índice de morbidade abaixo da média nacional, resultando em melhor índice de produtividade e menor absenteísmo.
No caso das cooperativas e associações, essas entidades são custeadas pelas próprias pessoas a elas vinculadas, portanto, também têm interesse em otimizar os custos e promover a saúde de todos, o que vai ao encontro de um dos princípios fundamentais do SUS, foco nas ações preventivas.
Infelizmente, o governo anterior estava determinado a acabar com os planos de autogestão das empresas estatais federais e expediu, em janeiro de 2018, a resolução nº 23, da Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União (CGPAR), criando inúmeros empecilhos para que esses planos possam se expandir e manter sua sustentabilidade, pois determina que as estatais federais limitem os recursos destinados a elas em vários dispositivos. O governo atual, como se sabe, dá continuidade ao processo de destruição do País e à retirada de direitos da população.
Atualmente, o número de usuários, entre empregados e dependentes dessas autogestões, está próximo à casa dos 5 milhões – que usufruem planos de qualidade com um custo bastante acessível.
Com a retirada de recurso imposta pela CGPAR 23, os planos das empresas encarecerão a cada ano, fazendo com que grande parte dos trabalhadores não tenha mais condições de arcar com eles, sendo forçados a buscar, nas operadoras privadas, serviços com qualidade e coberturas inferiores, as quais também encarecem com o tempo, pois geram lucro para seus donos. Assim, em breve, essas pessoas não terão mais condições de mantê-los e sobrecarregarão o SUS, que também tem seus recursos contingenciados pela EC 95, como já mencionado.
Essa escalada visa a dois objetivos que favorecem as elites econômicas em detrimento dos interesses dos trabalhadores e da população em geral. O primeiro deles é reduzir os custos das estatais para as tornar ainda mais atrativas e facilitar o projeto de privatização. O outro é entregar ao mercado esse grande contingente de consumidores que hoje faz parte das autogestões.
A conclusão a que se pode chegar, analisando essas políticas, é que o real interesse por traz delas é o aniquilamento de uma das conquistas mais importantes da sociedade brasileira, o maior sistema de saúde universal do mundo, além da destruição das autogestões das empresas estatais. Mas, analisando o teor dos artigos 196 a 200 da nossa Constituição Federal, chegamos à conclusão de que as autogestões em saúde desempenham o verdadeiro papel da chamada saúde suplementar, pois contribuem com o SUS, sem, com isso, obter lucro.