*Célia Regina do Nascimento
Era junho de 1992, eu fazia parte da diretoria da APCEF SP. Era um tempo singular, como são todos os tempos, afinal.
Fui indicada para a ECO 92! Porque eu era aquela pessoa que recolhia plásticos para o Hospital do Fogo Selvagem, levava corais para a entrada do prédio da Avenida Paulista na Semana do Meio Ambiente, convidava Cacilda Lanuza, atriz esquecida totalmente pelo público, para falar sobre sua ONG, não chamávamos ainda assim essas organizações, quase todas caseiras. Eu era essa pessoa do verde, muitas vezes chata mesmo.
O meu trabalho missão na Conferência era tratar da REFORMA URBANA, proposta incrível levada pelos companheiros de Associações de todo Brasil e por gente de muitas partes deste mundão. A chave de discussão, para nós da Caixa, era o uso dos recursos do FGTS. Foi uma e uma responsabilidade enormes.
Fiz valer o convite e a oportunidade. Reuniões o dia todo com companheiros de todo Brasil e algumas vezes com os estrangeiros. Uma Babel deliciosa! Gente sonhadora, militante, que verdadeiramente sabia que Meio Ambiente não era sair abraçando Árvore (ainda que sem esse carinho e essa interação, esquecemos que somos pequenos) e que a questão estava já muito mais na economia que na biologia, no uso de recursos, de um socialismo verdadeiro e instigante para as futuras gerações.
É difícil dizer da minha alegria daqueles dias. Rio de Janeiro, Aterro do Flamengo, Greenpeace, Dalai Lama, artistas engajados, tendas e tenda e tendas e dentro discussões que avançavam os dia e noites, música para todo lado. A gente até esquecia que era o Collor que estava no poder e que possivelmente havia tido uma limpeza de gente nas ruas do Rio, com a retirada de mendigos. Nunca se soube ao certo, mas é bem possível. Sabíamos que não era, nem de longe, uma forma de perfeição; mas havia energia e verdade na luta de todas as pautas. Bicho, planta, clima, mares, florestas.
As discussões sobre Reforma Urbana foram fantásticas. Traçamos planos, redigimos documentos, trocamos agendas. O fruto ainda está por aí. Dando mais frutos ainda que alguns não germinaram.
Um fruto que destaco: O Direito à Cidade tornou-se palpável e discutido, em especial com administrações petistas em vários municípios brasileiros.
Antes de escrever este texto, busquei o site do Fórum Nacional de Reforma Urbana. E chorei. Ainda estão lá.
Aqueles dias no Aterro do Flamengo eram dias de esperança. Apesar de tudo. TUDO. Sei que pode parecer bobagens de ecologistas, mas estávamos irmanados de verdade. Na Conferência paralela, onde estávamos nós, não entrava descartável, comida industrializada, falávamos com respeito uns com os outros, divergíamos científica e politicamente, queríamos aprender com todos, refeições eram divididas e o assombro com a beleza era constante. Alguns diriam que era uma manifestação hippie fora de tempo. Deixa estar.
A festa foi linda, pá.
Junho de 2012, fui para Rio+20.
Já não estava mais na Caixa. Saí em 2001 num PADV e segui os caminhos da educação e da arte que sempre me chamavam com insistência. Arrisquei tudo.
Ainda militava e estudava a questão ambiental. Fui para universidade para aprimorar o que sabia de trabalho na base, para usar as palavras certas. Nos vinte anos que separam as Conferências, eu sabia muito mais sobre a problemática ambiental.
Em 2012 eu trabalhava em cidades da Amazônia, fazendo Educação Ambiental com alunos e professores de Escolas de primeiro e segundo grau. Pura paixão por este trabalho.
Tomava banhos em rios amazônicos que começavam a ficar poluídos pelo crescimento das cidades. Uma delas era Paragominas, a cidade que mais desmatou a Amazônia e que estava na lista negra do IBAMA e dos financiamentos internacionais, que de tão violente era chamada Paragobalas! O prefeito Adnan ganhara prêmio da ONU por sua batalha contra madeireiros.
Fiz um projeto absolutamente extravagante para a Rio+20, desejava levar alunos, professores, fazer um documentário de nossa viagem com patrocínio de ex-desmatadores, parcerias com escolas de todo Brasil e ainda mais, ainda mais. Era mesmo um projeto ousado, mas totalmente possível pois muito calculado com vários outros educadores e sonhadores.
Não consegui realizar quase nada. Apesar do prêmio da ONU, Adnan se preocupava mais com questões grandes, que tivessem vitrine e menos com os alunos. Não digo isso para criticar, mas porque essa postura seria uma mostra do caminho que a questão ambiental estava seguindo e do que seria aquela Conferência tão aguardada vinte anos depois. Adnan fez um importante trabalho na cidade, sem dúvida alguma, mas em relação a Rio+ 20 foi bastante pobre sua contribuição e seu modo de entender. Ao final, conseguimos ir com seis professores.
Alguns nunca tinham viajado de avião nem conheciam o Rio. Ver seus maravilhamentos com a cidade é imagem que não esqueço jamais.
Uma professora, ao ver tanta gente reunida, tantos idiomas, tantas novidades disse: “Aqui mora a democracia. ”
Mas a alegria não estava mais lá. Aquele cenário de 1992 sofreu uma transformação profundamente triste, desafiador para nossa militância.
As atividades estavam todas espalhadas, com horários marcados e rígidos, inscrições poucas, burocráticas e desorganizadas, obrigavam os participantes a andar pela cidade de maneira bastante confusa. Era tudo cansativo, os preços abusivos de tudo, sem brilho.
Comida congelada, pizza, hambúrguer e montanhas de…lixo! Ao invés das comidas repartidas e cozinheiras carinhosas, a Brasken cuidava de tudo, podia descartável, podia cesta de lixo abarrotada, podia aquilo tudo que era insuportável em 1992.
Sei que parece sem muito valor esta consideração, mas quero afirmar que este cenário tão distinto era o tom da Conferência, era o tom do momento no qual a discussão e a pauta saíram das mãos da militância e foram para os escritórios mentirosos das grandes empresas. Brasken. A montanha de lixo não é uma metáfora.
Mas sim. Reparemos. A organização dos pequenos compareceu. Salvaram tudo.
Sim, as tantas cooperativas se organizaram para estar: quebradeiras de coco, pescadores, atingidos por barragem, catadores de lixo reciclável, pequenos extrativistas, agricultura familiar, guardiões de sementes.
A conversa sábia e magistral estava nesse grupo dos pequenos. Por vezes bem pequeninos mesmo.
Os professores que estavam comigo, que viajaram tanto, amaram e odiaram, esperançaram e desesperançaram.
As discussões posteriores foram incrivelmente ricas.
Todos nós, fazendo parte ou não do movimento ambiental, sabemos um tanto de como a história foi fluindo: a pauta ambiental acaba por se infiltrar em muitos lares, no discurso de empresários, nas embalagens, nas propagandas, na moda e quetais.
Mas se infiltrar não significa resolver e muito menos compreender as complexas engrenagens disso tudo. Entre o hippie e a Brasken existe um fosso que muitas vezes é quase visto como normal.
2020 – 2021, acompanho com alegria os projetos que tomam conta de várias Ocupações em especial nas periferias de São Paulo: essa gente aguerrida limpa o lugar, planta, faz cursos sobre gastronomia e alimentação saudável, muitos são catadores, estudam as plantas não convencionais, fazem geleia e pão, leem sobre política o tempo todo. Não são hippies. São pobres. Entendem que o chão da casa tem que ser cultivado sem abandonar o grito nas ruas. Essa gente e sua luta é o que mais me anima nas pautas ambientais atualmente. Claro, prender o Ricardo Salles!
Aquele pequeno que eu vi na Rio+20, e que sempre existiu, está resistindo de maneira absoluta e munida de uma dignidade que não tem tamanho.
O MST dá um show nesta pandemia alimentando milhares de pessoas, enquanto continuam as perseguições e mortes no campo. Mas se o campo é minado, é também germinado com abóbora, feijão, mandioca, banana, laranja, batata, amendoim.
A luta não vai terminar nunca, a gente já sabe. Ela ganha contornos cada vez mais terríveis. Sabemos hoje, por exemplo, da existência do Racismo Ambiental. Nunca deixaremos de nos surpreender com novos formas de praticar crimes novos e velhos por grupos que não reconhecem a extensão do planeta e de que ele é de todos.
E o lema erguido em 1992 ainda traz sentido para a luta: pensar globalmente e agir localmente ainda é justo e cabe na vida. A pandemia ajuda a pensar nessa máxima.
Pensei em ilustrar este texto com imagens destes eventos ou alguma imagem de fauna ou flora de beleza certa, mas preferi fazer esta foto.
Nela estão a camiseta que usei em 1992 e nunca me desfiz dela. Lembro com amor de quando a usei numa noite de vigília passada em companhia de centenas de mulheres. Vigiamos na areia da praia, orando, dançando, lendo porque na manhã seguinte haveria uma reunião importante sobre o clima no qual apenas os governantes estariam. Então vigiamos na esperança de iluminar os tais homens do poder. Eu era mãe de três filhos pequenos que ficaram com meu marido para que eu estivesse lá e eu pensava mesmo que era para as crianças que fazíamos aquilo. Enquanto escrevo este texto, me preparo para a chegada de meu primeiro neto. E continuo perseverando. Ainda estou em oração como naquela vigília.
Junto da camiseta, coloquei uma rosa amarela que está resistindo bravamente desde o último sábado quando saí às ruas para gritar Fora Bolsonaro. Comprei de um ambulante. Um dos pequeninos resistentes.
O que une a camiseta e a rosa é só mesmo o fio da Esperança.
*Célia Regina do Nascimento, trabalhou na Caixa de 1982 a 2001, educadora, ecologista e contadora de histórias