Não é exagero afirmar que as alterações nas relações de emprego introduzidas pela disseminação do chamado home office, ou escritório em casa, em tradução literal, correspondem a uma nova revolução no mundo do trabalho, como o foram a terceirização convencional e, mais recentemente, os serviços de transporte e de entregas por meio de plataformas digitais, a já consolidada “uberização”.
A Lei nº 13.467/2017, da reforma trabalhista, entre as várias mudanças prejudiciais aos trabalhadores, introduz na Consolidação da Leis do Trabalho (CLT), por meio do capítulo II-A, o teletrabalho. O artigo 75-B traz a definição do conceito como “… a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo.” Nos artigos seguintes há, de forma bastante superficial, a regulamentação de algumas condições para a implantação dessa nova modalidade de trabalho.
O texto legal, acima reproduzido, é absolutamente genérico e contempla muita coisa já existente, ou a ainda ser criada, pois, conforme essa definição, qualquer local, diferente das dependências da empresa, em que o trabalho seja realizado regularmente, em não se enquadrando na tipificação de trabalho externo, e com a utilização de tecnologias da informação e comunicação, será considerado teletrabalho.
No entanto, até pelas declarações e inciativas intempestivas de boa parte das empresas, notadamente os grandes bancos, a partir da experiência das atividades sendo realizadas nas residências dos empregados em larga escala, um mal necessário por força da pandemia do corona vírus, fica patente que o interesse real na regulamentação é especificamente pela modalidade “home office”.
O Banco do Brasil divulgou já há algum tempo sua intenção de, na pós pandemia, manter cerca de 11% de seus quadros nessas condições e a Caixa, embora, ao que se sabe, não tenha definido quantidade de trabalhadores que pretende manter em casa, tem procedido a entrega de prédios locados, como aconteceu com os edifícios Matriz II e Matriz III em Brasília e a transferência de unidades, incluindo agências, para locais muito menores, que certamente não comportarão a mesma quantidade de empregados presentes cotidianamente antes do advento do corona vírus.
Interessante notar que os artigos da lei que se seguem, 75-C a 75-E, ao estabelecerem os requisitos exigidos não fazem referência direta à residência do trabalhador, tampouco registram os termos “home office” ou “trabalho em casa”, apenas estabelecem em alguns pontos condições, infere-se, referentes a modalidade, garantindo vantagens à empresa, como a não indenização de equipamentos e toda a infraestrutura adquiridos pelo trabalhador (75-D) e a exigência de orientações, por parte do empregador, a fim de evitar acidentes e doenças do trabalho, transferindo o ônus de eventuais ocorrências, ao próprio empregado, por meio da assinatura de termo de responsabilidade (75-E).
Em outras palavras, ressalvadas essas duas disposições, ambas em desfavor do empregado, o novo capítulo da CLT trata o trabalho na residência como qualquer outra situação a ser considerada teletrabalho, mas a partir de uma análise minimamente mais acurada, constata-se haver muitas peculiaridades a diferenciá-lo de qualquer outro tipo de atividade realizada fora dos ambientes da empresa.
Ainda quanto a aspectos bem objetivos, mas com os quais o texto não se preocupa, podemos citar um bastante óbvio, as residências das pessoas são diferentes umas das outras, podendo haver algumas espaçosas, possuindo cômodo privativo apropriado para ser utilizado como escritório, permitindo uma boa adequação aos requisitos necessários à realização das atividades, porém outras, ao contrário, são acanhadas e não dispõem de local adequado a esse fim. Algumas, inclusive, habitadas por famílias numerosas, possivelmente com mais de uma pessoa trabalhando em home office ao mesmo tempo. Em casos como esse, o escritório coletivo será montado sobre a mesa de jantar, ou em outro espaço tão improvisado quanto.
Para as mulheres as condições são ainda mais complicadas, com a responsabilidade pelos afazeres domésticos, que a cultura ainda predominante na sociedade considera atribuições tipicamente femininas. Se houver filhos pequenos, que exijam cuidados e atenção, a situação pode se tornar inadministrável. A essa lista podemos acrescentar, ainda, inúmeros outros prováveis inconvenientes.
Christophe Dejours, psiquiatra francês, pesquisador na área da saúde mental dos trabalhadores e criador da teoria da Psicodinâmica do Trabalho, afirma que entre o trabalho prescrito e o trabalho real, existe uma diferença abissal, percebida somente pela subjetividade do trabalhador, impossível de ser transcrita para manuais, pois é ele quem na prática vive a experiência do trabalho e sabe quais normas podem ser “descumpridas” ou “adaptadas” para viabilizar a execução das atividades, superando os obstáculos não previstos nos manuais. Se isso se aplica à forma tradicional, o que dizer quando pensamos em teletrabalho, ou, mais especificamente, em home office?
Os obstáculos e as limitações impostas pela insuficiência dos recursos fornecidos pela empresa e os mecanismos de cobrança por produtividade, entre muitos outros elementos, dificultam a execução das tarefas, gerando sofrimento, que pode rapidamente se transformar em adoecimento mental. Evidentemente isso também é uma realidade no trabalho presencial, porém o isolamento em relação à equipe impossibilita o empregado de reivindicar melhores condições por meio de uma ação coletiva e solidária, com o suporte da entidade sindical. A sensação de insegurança torna-se inevitável, principalmente quando a chefia possui perfil autoritário.
Outra situação que deve ser avaliada com bastante sensibilidade é a invasão do espaço privado das pessoas pelo empregador, cujas consequências são impossíveis de se prever exatamente, porém, certamente, essa confusão entre vida pessoal e trabalho, traz reflexos negativos para a vida social como um todo, mas especialmente nas relações familiares.
É muito fácil dizer que é preciso haver disciplina e organização para que as coisas sejam mantidas separadas, tanto em relação aos ambientes, como quanto à jornada de trabalho, mas circunstâncias imponderáveis frequentemente inviabilizam essa separação. A cobrança por metas de vendas de produtos, por exemplo, faz com que o trabalhador, não raro, seja obrigado a não só extrapolar sua jornada diária e muitas vezes comprometer o próprio descanso remunerado.
Embora ainda muitos trabalhadores sejam favoráveis ao home office, a cada nova pesquisa esse número decresce. Evidentemente, essa avaliação parte da realidade individual de cada um, alguns tem condições físicas e familiares mais favoráveis de se organizar. O perfil da chefia também é fator determinante, mas, de modo geral, algumas desvantagens, mais cedo ou mais tarde, surgirão, qualquer que seja o contexto em que se dê o trabalho em casa, pois se trata do ambiente privado, não pode se transformar, simplesmente, na extensão da empresa.
Os principais argumentos dos trabalhadores que defendem a modalidade, são a economia de tempo e dinheiro, por não necessitarem se deslocar até as dependências da empresa, no entanto, levantamento realizado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos – DIEESE, aponta que 70% dos trabalhadores entrevistados reportaram ter tido aumento da carga de trabalho e o aumento da tensão para manutenção do nível de produção, com reflexos na saúde física e mental.
Em contrapartida, quando se analisa os possíveis prós e contras para o empregador, torna-se difícil apontar uma desvantagem, que seja. A começar pela diminuição dos custos em diversos itens como não precisar gastar com vale transporte, redução das estruturas, economia em aluguéis, água, luz, limpeza, internet; eliminação de responsabilidade com a saúde e a segurança dos empregados; redução do absenteísmos, pois, estando em casa, o trabalhador pode produzir mesmo doente etc.
Diante da forma abrupta que a nova modalidade de trabalho teve de ser implementada, muitas entidades representativas se apressaram em buscar negociar os termos de acordos coletivos de trabalho para garantir condições menos desfavoráveis aos empregados, tratando o tema como algo irreversível. No entanto, o que se observa é que alguns instrumentos já assinados, especialmente no setor bancário, tratam a questão de forma absolutamente superficial, tentando garantir uma indenização mensal pelos custos arcados pelos trabalhadores, a obrigatoriedade do registro de jornada, e mecanismos que impeçam as chefias de contatarem os trabalhadores fora de seu horário normal de trabalho, o que não é algo simples de se controlar, não indo muito além disso.
No caso específico da Caixa, as informações que chegam é que as reuniões ocorridas até o momento entre os representantes dos trabalhadores e da empresa, restringiram-se a essas mesmas questões. Esses pontos, obviamente, são importantíssimos, porém representam uma pequena parte de toda a complexidade envolvida na implantação do trabalho em casa.
Seria necessário um debate profundo, envolvendo todos os bancários e com a participação de profissionais nas áreas de saúde, que tenham estudado o tema, para se obter uma avaliação mais precisa e ao mesmo tempo que os empregados possam entender as consequências advindas futuramente em decorrência dessa implantação.
É preciso ser construída coletivamente uma pauta específica sobre o tema, estabelecendo-se algumas condições preliminares, como por exemplo, a utilização do trabalho em casa em situações especiais, como no período de isolamento social, em razão da pandemia, garantindo também que, a qualquer momento, por seu interesse pessoal, o trabalhador possa retornar ao trabalho presencial.
Para o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han “O home office também cansa, ainda mais do que trabalhar no escritório. Causa tanto cansaço principalmente porque carece de rituais e estruturas temporárias fixas. É esgotante trabalhar sozinho, passar o dia todo sentado de pijama na frente da tela do computador. Também ficamos exaustos com a falta de contatos sociais, a falta de abraços e de contato corporal com os outros.”