Movimento

Cultura não é mercadoria

Estamos ao lado dos que lutam pela democratização do acesso ao conhecimento mediante o conceito da cultura como bem comum, como patrimônio da humanidade e não como mercadoria apropriada individualmente por quem tem recursos para comprar bens. No entanto, a ideologia neoliberal continua embasando as ações políticas dos governos mundo afora com sua lógica insana de mercantilização de tudo. Em síntese, a destruição do acesso público aos bens vitais. Privatização.

Ao lado dos movimentos em defesa dos diretos à Saúde, Educação, Habitação, etc. existem os movimentos sociais que lutam contra a privatização da cultura e pela criação de políticas de Estado de fomento à cultura, protagonizados, principalmente, pelos trabalhadores desse setor (teatro, dança e afins).

Mas, neste texto, queremos apontar para um aspecto dessa luta, em que a cultura pode ser uma importante ferramenta de fortalecimento individual e coletivo de nossa classe.

Desde o início do século XX, as produções artísticas passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas, que já nascem expostas a fotos, ao cinema, à música e a toda sorte de produtos da chamada indústria cultural. Isso acontece de forma tão naturalizada que parece não ser necessária nenhuma reflexão ou pensamento crítico sobre tal fenômeno. Gradualmente, as manifestações artísticas tradicionais vão sendo esquecidas ou são assimiladas pela indústria cultural.

Esse aumento da distância entre produtores e consumidores refletiu na maior parte das práticas sociais cotidianas. Criar e produzir cultura foi se tornando “coisa de especialista”. Uma nova tradição cultural foi sendo disseminada informalmente e incorporada aos hábitos de consumo disponibilizados e regulados pela indústria cultural. Há um consenso do que é e de como nos relacionamos com a cultura.

Por outro lado, é de grande valor situarmos parâmetros mais gerais de como se dá a relação do público com a arte nas sociedades capitalistas contemporâneas e, assim, contextualizar os potenciais e as limitações colocadas ao desenvolvimento da relação dos indivíduos com a produção e fruição das artes.

Encontramos apoio na obra do professor de estética, Adolfo Sánches Vázquéz, da qual citamos essa importante caracterização:

 

 

“Vemos, pois, que – pela primeira vez na história – o desenvolvimento da ciência e da técnica oferece à arte a possibilidade de ser desfrutada por um público potencial formado por milhões e milhões de homens. E, pela primeira vez também, nas condições concretas da sociedade capitalista, este gozo ou consumo dos produtos artísticos se frustra e entra em contradição com sua própria natureza – como assimilação ou apropriação verdadeiramente humana do objeto – na medida em que é um gozo ou consumo dirigido, isto é, “pré-fabricado”. Mas, por sua vez, este modo de consumo é o que mais adequadamente corresponde ao tipo de produção artística ou pseudoartística que denominamos arte de massas. Pois como poderia o sujeito apropriar-se humanamente, em toda a sua riqueza de manifestações e significações estéticas e humanas, do que já se oferece em si como um produto pobre e vazio do ponto de vista estético e humano? Como poderia estabelecer uma relação com uma pseudoarte que resvala por nossa pele, que não exige colocar em tensão nossas forças humanas essenciais, que não aborda com profundidade nenhum problema, que não penetra nas fibras mais profundas de nosso ser e, finalmente, que ao invés de esperanças fundadas oferece tão somente a mentira de falsas e medíocres soluções e de narcotizantes ilusões?” (1978, p. 280-284).

Desse ponto de vista, podemos ponderar que a disseminação de atividades práticas-educativas voltadas para o desenvolvimento de habilidades criativas e artísticas do público tende a entrar em contradição com a dinâmica geral da produção e fruição disseminadas pela indústria cultural hegemônica. Podemos também concluir que, apesar dessas limitações, qualquer atividade artística desvinculada da mercantilização pode ser um ponto de apoio importante para a recuperação dos aspectos mais essenciais da relação das pessoas com a fruição estética e sua familiarização com as linguagens da arte.

Dessa forma, apresentamos uma defesa da importância dos projetos de desenvolvimento de atividades artísticas no interior dos movimentos associativos, sindicais e políticos para além de sua fundamental função de entretenimento. Se é por meio de linguagens emprestadas das artes que determinadas formas de dominação se reforçam, será pela familiarização e pelo conhecimento crítico das técnicas e linguagens da arte que se torna viável o contraponto.

Além do mais, com essa reflexão, poderemos perceber que mesmo em um ambiente de trabalho em que a arte estaria completamente separada das atividades diárias e seria estranha aos objetivos empresariais, a dimensão estética está presente e ativa. Perceberemos que os mais diversos sistemas de imagens fazem parte da comunicação institucional das empresas, ocorrendo, principalmente, pelos sistemas computacionais como a intranet e materiais impressos de todo tipo.

Mesmo nos ambientes aparentemente mais hostis à arte é possível encontrar sistemas visuais de comunicação, que se utilizam de estruturas formais “emprestadas” das artes visuais.

Tais imagens não são imediatamente percebidas como uma linguagem criada com objetivo persuasivo, posto que as imagens fotográficas se integram ao cotidiano de forma naturalizada. Essas estão entre as mais utilizadas e persuasivas. Desvendar como se processa a sua construção e exercitar procedimentos que qualifiquem a sua leitura é uma maneira de enriquecer a capacidade do público de interagir e reagir, de forma mais crítica, aos sistemas de comunicação social. Esse processo passa a ser componente importante da educação em seu sentido mais profundo.

A mesma lógica pode ser aplicada a outras linguagens artísticas. No contexto social é que se desenvolvem os significados atribuídos às imagens, aos sons, aos movimentos, às palavras pelos indivíduos contextualizados em classes sociais e grupos culturais específicos aos quais todos pertencemos.

Nossa percepção é condicionada no interior de determinada sociabilidade, da qual não podemos escapar, embora possamos nos dar conta de sua existência e reagir sobre tais condicionamentos criando novas possibilidades de desenvolvimento.

O caminho da sensibilização para uma atividade artística em seu sentido mais amplo, como atividade humana criativa por excelência, é uma forma eficiente de revelar as dimensões ocultas pela ideologia da indústria cultural e educar pessoas para uma interação mais ativa e crítica com todas as dimensões da comunicação e ação social.

Consideramos a possibilidade de articular a discussão de elementos teóricos críticos com uma prática instigante e desafiadora, a qualidade mais interessante de trabalhar a fotografia, pois a familiaridade com o fazer fotografia que as pessoas já possuem propicia uma rápida adesão e adaptação ao projeto educativo, de desvendar essa aparente naturalidade e objetividade da comunicação social. A própria experimentação prática pessoal é o motor das descobertas.

Em síntese, ter uma política voltada para a produção de artes é também política de formação de indivíduos mais críticos (e felizes).

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