A chegada da extrema-direita ao poder no Brasil inaugurou uma série de manifestações bizarras. No dia de hoje, teremos a infelicidade de testemunhar um desses atos-de-horror: a celebração do arbítrio e da violência como fundamentos da ordem que se busca instituir no país. O governo de Jair Bolsonaro e “seu” Exército patrocinam as festividades: na visão desse amálgama conservador, é chegado o momento de comemorar o golpe de estado que daria origem às duas décadas de ditadura militar. Por meio de malabarismo retórico, os integrantes desses agrupamentos retrógados avisam: é preciso não esquecer que a “revolução” era necessária. Ao recorrer indiscriminadamente à contradição, os defensores do arbítrio argumentam: para salvar a democracia era preciso acabar com ela primeiro. “A Revolução é irreversível e consolidará a Democracia no Brasil”, lema que estamparia os documentos oficiais produzidos pela ditadura que apenas se iniciava. O argumento, que se confunde com uma falácia – o princípio da inevitabilidade de certos processos históricos – é, de fato, uma espécie de mote dos apoiadores do golpe de 1964 e da ditadura militar.
Assim como nos anos de ditadura, a fragilidade dessa premissa procura falsear a trama histórica, que havia nos conduzido ao projeto autoritário de 1964 e à tragédia social da década de 1980.
Bem como para os agrupamentos que se beneficiaram com o golpe de abril de 1964, a justificativa utilizada nos dias de hoje procura esconder os interesses pedestres de uma elite econômica que rejeitava qualquer medida que procurasse reduzir desigualdades sociais.
Para o atual governo, a narrativa oficial de celebração dos supostos “feitos da revolução gloriosa”, tem o propósito de omitir do público as arbitrariedades, a violência, as práticas de corrupção, os assassinatos políticos, enfim, o embrutecimento de nossa vida coletiva com o argumento de que: era necessário salvar o país de um abstrato perigo comunista. Passadas mais de cinco décadas desde o remoto abril de 1964, é preciso não esquecer que a manipulação da história, por meio do revisionismo, ameaça a possibilidade de construirmos um país mais justo. Se, ao historiador compete a tarefa de lembrar à sociedade aquilo que ela deseja esquecer, devemos nos lembrar: não há nada a se comemorar em ditaduras militares.
Em sociedades como a nossa, cujo passado recente está marcado por experiências autoritárias essa é uma das tarefas mais difíceis e, sem nenhuma dúvida, uma das mais necessárias.
Esta atividade, ou seja, a produção de conhecimento historiográfico sobre eventos próximos do nosso entorno temporal e/ou “afetivo” representa desafio extra aos historiadores que se debruçam sobre o passado recente. Apesar de reconhecermos os desafios, devemos destacar que o país possui uma historiografia sofisticada, construída por historiadoras e historiadores comprometidos com a pesquisa científica. Por meio de um amplo aparato teórico e metodológico, dedicam-se a alcançar resultados satisfatórios (ainda que provisórios).
Podemos argumentar que a instabilidade das interpretações não se pode confundir com o falseamento do passado histórico. Ao longo dos últimos anos, temos testemunhado o uso político de determinadas memórias, com o intuito de “revisar” a história do período, ressignificando-a em benefício de projetos autoritários no tempo presente. Para aqueles que se interessam pelo estudo da história recente do país, devemos lembrar que o longo período de ditadura militar, até a melancólica retirada em meados da década de 1980, com o último ditador, o general João Figueiredo, assinala um período extremamente complexo.
Se por um lado, foram anos de transformação interna acelerada, de crescimento desordenado, de concentração de renda; foram, ao mesmo tempo, anos de “favelização” dos centros urbanos, de precarização da vida, de explosão da violência. Anos de perseguições e assassinatos políticos, de tortura oficializada, de repressão, de medo. Se, pode-se argumentar, foram anos que reforçaram traços de uma sociedade marcada pela extrema violência, pelos altos índices de criminalidade e pela brutal desigualdade social; foram, ao mesmo tempo, anos de expansão das atividades econômicas, da multiplicação da indústria, da “revolução sexual”, da revolução latino-americana, dos barbudos da Ilha. Assim, não podemos esquecer que nós seguimos o esforço de compreensão desses anos turbulentos, porque o sofrimento causado pelo terrorismo de Estado acompanha a vida de milhares de brasileiros que sofreram (ainda sofrem) diretamente com a violência da ditadura. É preciso lembrar que a montagem de um Estado terrorista é uma opção política, não uma contingência histórica.
Ao inserirmos mais um ano entre o gole de 1964 e o tempo presente, devemos nos lembrar: não há o que comemorar. É preciso não esquecer.
Pedro Teixeirense é doutor em História pela UFRJ.
Atualmente, ele é pesquisador Pós-Doutor ligado ao INCT-Proprietas.
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