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Governo federal lança proposta para favorecer planos de saúde privados e fragilizar o SUS

Especialistas em saúde coletiva da Faculdade de Saúde da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) elaboraram documento conjunto em que justificam por que são contra a proposta de “Política Nacional de Saúde Suplementar para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19” colocada em consulta pública pelo Ministério da Saúde no período de 3 de maio a 2 de junho de 2021.

A consulta apresenta cada item do documento e pede ao público que se manifeste favorável ou contrariamente, apresentando as justificativas ou propostas de alterações. Os integrantes dos dois grupos, de acordo com essa orientação, manifestaram ser contrários a todos eles e apresentaram suas justificativas, abaixo reproduzidas, resumidamente:

Art. 1º Fica instituída a Política Nacional de Saúde Suplementar para o Enfrentamento da Covid-19 – PNSS-Covid-19, com a finalidade de integrar as ações de Saúde Suplementar no enfrentamento à Covid-19.

Justificativa: a “integração” proposta não prevê regular as práticas dos planos privados, mas, sim, usar o SUS para alavancar esse mercado. Além disso, o setor é altamente concentrado nos grandes centros, variando entre 41 % da clientela em São Paulo e 5% no Acre.

Art. 2º São princípios da PNSS-Covid-19:

I – respeito à dignidade da pessoa humana;
II – integração com o Sistema Único de Saúde – SUS;
III – excelência da prestação de serviços de saúde;
IV – transparência nas informações à sociedade;
V – responsabilidade econômico-financeira; e
VI – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor.

Justificativa: enumera uma série de princípios jamais observados pelas operadoras privadas e ignora o essencial, inscrito na Constituição de 1988: o direito universal à saúde.

Art. 3º São objetivos da PNSS-Covid-19:

I – integrar o sistema de Saúde Suplementar com as ações do Sistema Único de Saúde – SUS relacionadas à pandemia da COVID-19.

Justificativa: os valores e as práticas do SUS e dos planos privados são heterogêneos e, na maioria das vezes, divergentes, o que inviabiliza a proposta de “integração”. Qualquer aproximação dependeria da adoção da saúde como um bem comum. O que chamam de “integração”, na verdade, é a ideia de o SUS como rede prestadora das operadoras privadas, adicionada à liberação da venda de planos com coberturas reduzidas.

II – promover o atendimento à saúde objetivando o melhor desfecho clínico, com o custo adequado e atenção especial à experiência do paciente.

Justificativa: a estrutura assistencial dos planos privados não inclui medidas que previnam exposição a riscos. As redes prestadoras de serviços têm qualidade distintas, de acordo com os tipos e preços de planos. Esse modus operandi leva a desfechos ineficazes, tais como: descontinuidade de tratamentos, indefinição de responsabilidades e conflitos entre operadoras, profissionais de saúde e pacientes.

III – garantir o atendimento à saúde em prazos razoáveis, condizentes às necessidades do paciente e aos contratos, observadas a sua função social e a sua vulnerabilidade do consumidor.

Justificativa: os prazos dependem do tipo de plano. Nos planos “VIP”, os prazos são curtos, nos planos básicos, há longa espera que, muitas vezes, deságua no atendimento pelo SUS. O que está por trás dessa proposta é revogar o artigo 3º da RN 259/2011 da ANS, que definiu prazos máximos para o atendimento, uma “pedra no sapato” das operadoras privadas.

IV – proporcionar ambiente de intermediação buscando a solução de conflitos no relacionamento entre operadoras e prestadores de serviços de saúde.

Justificativa: “intermediação”, aqui, é a possiblidade de aumentar a interferência das operadoras nas condutas dos médicos e profissionais de saúde, desautorizando determinados tratamentos ou glosando procedimentos após a sua realização.

V – garantir a previsibilidade dos reajustes das contraprestações na Saúde Suplementar (…)

Justificativa: nada mais previsível do que os reajustes de mensalidades, sempre muito acima da inflação, na maioria dos casos autorizados pela ANS. Abusos nos reajustes têm sido um tormento, especialmente para pessoas com doenças graves que se veem ameaçadas na manutenção do tratamento.

VI – (…) e contribuir para o desenvolvimento sustentável do setor de saúde privada do país.

Justificativa: desde que foi criada, a saúde privada só cresce no Brasil, além do mais não há justificativa para o apoio governamental ao setor privado de saúde em um país que tem o SUS e a saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Isso é uma imoralidade.

Art. 4º São diretrizes gerais da PNSS-Covid-19:

I – estabelecimento de ações que visem ao desestímulo ao atendimento de beneficiários de planos de saúde no SUS, no limite das coberturas contratadas.

Justificativa: propositalmente ambígua, a redação remete a planos com coberturas mínimas e fortes barreiras de acesso, tendo como “garantia” o acesso ao SUS. O plano cobriria apenas consulta com generalistas e exames baratos, o resto é com o SUS. Seria uma divisão de ações, na qual os planos ficam com o baixo custo e o SUS arca com tudo mais.

II – monitoramento e integração das informações da rede privada de serviços de saúde ao SUS, em especial, em relação aos dados de atenção à saúde e à ocupação de leitos.

Justificativa: é relevante estabelecer uma base comum de informações para o monitoramento do acesso e a qualidade da atenção à saúde no país. Não para facilitar o ingresso de clientes de planos no SUS, mas informação em saúde é uma atribuição do Ministério da Saúde e não da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

III – empreendimento de ações que visem a garantir o atendimento, em prazos razoáveis, às necessidades de tratamento dos pacientes.

Justificativa: a expressão “razoáveis” embute a pretensão de não estabelecer prazos, o que leva pacientes a não obter cuidados em tempo oportuno para seus problemas de saúde. Os planos “baratos” e com coberturas restritas não são compatíveis com garantias mínimas. E para que existam, assegurando retornos máximos aos investimentos das operadoras, requerem o ambiente de total desregulamentação almejado.

IV – estabelecimento de mecanismos que busquem reforçar o cumprimento das coberturas contratadas pelos consumidores.

Justificativa: planos com coberturas reduzidas, ou seja, somente aquelas consignadas nos contratos, aumentariam o número de clientes do segmento suplementar e trariam mais retornos financeiros às operadoras. Restrições radicais de cobertura tornam atrativo o preço de mensalidades em um primeiro momento, mas, na hora do adoecimento, tendem a gerar gastos catastróficos e a busca tardia pelo SUS por indivíduos e famílias.

V – estabelecimento de mecanismos que busquem solucionar conflitos no relacionamento entre operadoras e prestadores de serviços de saúde.

Justificativa: o setor suplementar mantém estreitas relações entre prestadores e operadoras, que determinam protocolos assistenciais e valores de remuneração, nem sempre compatíveis com a ética profissional e com as necessidades de saúde.

VI – promoção da transparência das informações acerca dos reajustes das contraprestações à sociedade.

Justificativa: a ideia subjacente à palavra “transparência” é uma só – a de reajustes anuais para contratos individuais e coletivos baseados na variação dos custos médico-hospitalares e das novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas. As operadoras poderiam, assim, definir reajustes diferenciados conforme a região e em função do tipo de plano, com a venda de módulos segmentados de cobertura e padrões distintos de rede credenciada.

VII – promoção de ambiente regulatório que fomente o aumento do acesso ao setor de saúde suplementar (…)

Justificativa: a verdadeira intenção é interditar o direito a recorrer a instâncias jurídicas. As ações judiciais têm sido fundamentais para garantir o direito dos usuários de planos privados.

VIII – (…) e reforço de garantias financeiras por meio de instrumentos de regulação prudencial das operações no setor de saúde suplementar.

Justificativa: garantias financeiras, com liquidez, são exigidas para todas as instituições de natureza securitária. Versões anteriores de propostas empresariais queriam suprimir punições e multas às operadoras.

Art. 5º As ações da PNSS-Covid-19 serão elaboradas e apresentadas ao CONSU pela Agência Nacional de Saúde Suplementar no prazo de 30 (trinta dias) da aprovação da presente resolução e deverão prever o prazo para a implementação e a estratégia de monitoramento e de avaliação.

Justificativa: o CONSU, uma instância consultiva, passaria a arbitrar conflitos e celebrar termos de mediação envolvendo a regulamentação dos planos de saúde. Essa atribuição é da ANS, agência reguladora e não um órgão público pró-mercado. O CONSU é um órgão de natureza política, não compete a ele encomendar para a ANS um plano para a expansão do setor privado.

Art. 6º Esta Resolução entra em vigor na data da sua publicação.

Justificativa: trata-se, aqui, de tentativa de “passar a boiada”, de mudar a legislação para assegurar a comercialização de planos com coberturas restritas por meio de expedientes administrativos, mediante a convocação e mobilização do CONSU. É mais uma manobra para evitar o debate franco e aberto. Mais um episódio protagonizado pela “coalizão” entre empresários, autoridades governamentais e parlamentares que se tornaram conhecidos por palavras e gestos contra a ciência, os direitos humanos e a democracia.

O documento conclui afirmando que “Política Nacional de Saúde Suplementar Para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19” precisa ser sustada. E denunciando as estratégias sub-reptícias dos empresários da saúde que não perdem oportunidade de desviar recursos públicos para favorecer seus interesses privados, contando com a conivência e a omissão das autoridades de plantão, incompetentes no enfrentamento à pandemia.  E, finalmente, que a proposta é mais uma tentativa de alterar as regras do jogo e retirar direitos constitucionais dos cidadãos, justamente em um momento de crise sanitária, em que o SUS exerce papel preponderante.

“Esta consulta pública em nada acrescenta. Pelo contrário, retira o foco do fortalecimento do SUS para que agentes privados aufiram mais dividendos.”

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