Movimento

O golpe de 1964 e a classe trabalhadora

Por Pedro Ivo Teixeirense*

Ao longo das quase seis décadas que nos separam daquele fatídico abril de 1964, as raízes do golpe civil-militar, que daria origem às duas décadas de ditadura, têm sido objeto de intenso debate. As razões que, entre agosto de 1961 e abril de 1964, levaram as forças reacionárias no país a promover o golpe de força contra o governo de João Goulart, permanecem objeto de intenso debate.

Nos últimos anos, essas disputas têm produzido mais faísca do que luz. O uso do passado, com o propósito de avalizar posições políticas no tempo presente, provoca distorção incontornável no entendimento histórico sobre as origens do golpe. Neste breve artigo, procurarei demonstrar que os malabarismos retóricos, que procuram justificar o golpe de 1964, não conseguem elaborar análise embasada nas evidências factuais disponíveis.

Ao mesmo tempo, pretendo demonstrar que o golpe civil-militar é um acontecimento social e que, portanto, suas raízes devem ser procuradas na conjuntura histórico-social que permite seu surgimento. Em essência, o golpe de 1964 é uma ação das forças reacionárias contra os movimentos de trabalhadores organizados, que buscavam solução para os graves e persistentes problemas sociais brasileiros.

Com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República, ganhou força, entre as correntes que procuram justificar o ato de força contra o governo trabalhista de Goulart, o recurso à teoria da ação preventiva. Na leitura desses agrupamentos sociais, o “movimento militar de 1964” teria sido uma ação “patriótica” das Forças Armadas, com o respaldo das camadas populares, com o objetivo de prevenir a instauração de uma ditadura comunista no país. Nessa leitura, historicamente equivocada e – evidentemente contraditória – instalava-se uma ditadura para salvaguardar a democracia. É comum encontrarmos essa tese sob a seguinte formulação: “era preciso intervir para que o país não virasse uma nova Cuba”, em alusão ao movimento revolucionário que, em janeiro de 1959, derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista na ilha caribenha.

Para além de suas limitações metodológicas, essa análise – que procura explicar fatos históricos por meio de supostas ações preventivas – está embasada em argumentos ideológicos, que não encontram base nas informações históricas disponíveis. Em primeiro lugar, a historiografia brasileira já demonstrou que não havia, entre 1961 e 1964, a possibilidade de uma revolução comunista no Brasil. Não apenas pela fragilidade das forças comunistas durante o período, mas, também, pela natureza reformista tanto do governo de João Goulart, quanto dos movimentos sociais organizados. Em segundo lugar, embora o golpe de 1964 tenha contado com o apoio de segmentos da sociedade brasileira, assim como com o respaldo da imprensa coorporativa e da igreja católica, pesquisas de época apontam que o governo João Goulart contava com substantivo apoio popular. Mesmo em São Paulo, onde se organizou a maior e mais conhecida “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Na capital paulista, de acordo com pesquisa Ibope, 42% dos eleitores avaliavam positivamente o governo, contra 19% que tinham opinião diversa.

Torna-se evidente, dessa forma, que o golpe de 1964 não pode ser entendido como uma ação preventiva, sob pena de incorrermos em um grave erro histórico. Diante desses dados, como podemos, então, compreender a ação civil-militar que derrubou o governo Goulart? Em abril de 1964, o golpe contra o governo democrático e a ditadura que se instalou em seguida foram reações das forças conservadoras contra a mobilização de setores populares urbanos e de trabalhadores rurais organizados, que buscavam melhores e mais justas condições no pacto social brasileiro. O entusiasmo dos agrupamentos reacionários com a derrubada de Goulart está relacionado à crescente organização dos trabalhares brasileiros. As organizações sindicais e as cooperativas de camponeses lutavam por reformas sociais – as chamadas reformas de base – com o intuito de democratizar o acesso à terra, de popularizar o ensino superior e, em resumo, de diminuir a brutal desigualdade socioeconômica, que mantinha amplas camadas da população brasileira à margem da riqueza nacional.

O apoio do governo Goulart `as reivindicações sociais – como o acesso ao 13° salário, o direito de sindicalização no campo e o fim do “cambão” (mecanismo de exploração dos trabalhadores rurais) – passava a ser identificado como uma ameaça aos privilégios da elite nacional, que temia a aproximação do presidente da República com os setores populares. Ao mesmo tempo, o crescimento da Ligas Camponesas e a conscientização da necessidade de uma Reforma Agrária, que permitisse aos trabalhadores rurais o acesso à terra, ameaçavam a permanência de uma estrutura desigual e violenta, que marcava as relações sociais no campo brasileiro. Essas demandas ganhavam contornos com a realização de greves e protestos que exigiam a reorganização das relações sociais no país.

O golpe de 1964 serviu como mecanismo de contenção das demandas históricas do movimento de trabalhadores organizados, que desde o término da segunda guerra mundial se consolidava. Desde os primeiros momentos do golpe, em todo o país, cooperativas de trabalhadores, associações e sindicatos sofreram intervenção. A ditadura procurou desestruturar a representação trabalhista, perseguiu trabalhadores sindicalizados, prendeu, torturou e assassinou suas lideranças. No campo, em especial nos Estados da região Nordeste do país, inúmeros camponeses foram expulsos da terra e as Ligas Camponesas, que já sofriam processo de desestruturação, foram liquidadas.
Com o advento da repressão e a consolidação da ditadura, ainda no governo Castelo Branco (1964-1967), adotou-se uma política econômica que ampliou a margem de exploração do trabalho, proibiu greves, achatou os salários e degradou as relações trabalhistas.

Com o passar dos anos, o país se transformou em campeão mundial em acidentes de trabalho. No início dos anos 1980, com o fracasso retumbante do governo do general Figueiredo, tornou-se evidente a natureza da “modernização” promovida pela ditadura: o país mergulhou em uma espiral inflacionária, a desigualdade econômica saltou a patamares até então desconhecidos e a onda de violência explodiu nos centros urbanos brasileiros. O país que emergia após duas décadas de ditadura militar descobria, tarde demais, que o golpe contra o governo trabalhista de Goulart, fora, principalmente, um golpe contra os direitos dos trabalhadores e contra sua história de luta e de mobilização.

* Pedro Ivo Teixeirense é doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutorando (FAPERJ) na Universidade Federal Fluminense (UFF). Integra a Rede Proprietas, hoje INCT – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – História Social das Propriedades e Direito de Acesso.

Qual é a sua reação?

Animado(a)
0
Gostei
1
Apaixonado
0
Não gostei
0
Bobo(a)
0

Você pode gostar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais em:Movimento