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Saúde do Trabalhador, tema central na relação capital versus trabalho

A Saúde do Trabalhador (ST) difere radicalmente dos chamados conceitos hegemônicos Segurança e Saúde no Trabalho (SST), Higiene e Medicina do Trabalho, Saúde Ocupacional, entre outros, pois todos esses partem de uma visão tecnicista – saúde de quem trabalha é assunto para especialistas, em sua maioria médicos, ou profissionais do SESMT nos estabelecimentos que o comportam – e focada no indivíduo. Por isso, normalmente, acabam por culpabilizar a vítima.

O trabalhador sofre um acidente por não observar as regras de segurança. Comete, assim, o “ato inseguro” e adoece por não cuidar adequadamente de sua saúde. Não possui hábitos saudáveis, é sedentário, tem doenças preexistentes tratadas de forma inadequada etc., dizem eles.

Em ST, tem-se outro tipo de visão e abordagem, em primeiro lugar, porque o trabalhador não é encarado como objeto, mas como sujeito no processo de identificação de riscos de doenças e acidentes de trabalho.
Sua vivência e seu conhecimento das condições em que o trabalho é realizado são elementos fundamentais para o entendimento da ocorrência do adoecimento e do acidente de trabalho, mais do que isso, é por meio dessa experiência e vivência do trabalhador que se busca compreender a razão do sofrimento presente no trabalho, também chamado de penosidade, que é invisível, mas desgasta física e psicologicamente, de forma lenta, e quando chega ao limite do adoecimento, dificilmente é identificado como sendo a causa.

Outra diferença importante é que em ST o foco é coletivo, ou seja, os trabalhadores adoecem da mesma forma e sofrem acidentes semelhantes, pois os fatores de risco e as formas de organização do trabalho que não levam em conta as necessidades e a subjetividade dos trabalhadores afetam a todos indistintamente, independentemente de seus hábitos de vida e de suas características pessoais.

Para Cristophe Dejours, “as contradições da relação entre capital e trabalho são os motivos que conduzem ao adoecer do trabalhador e ao sofrimento físico, psíquico e emocional”. Os problemas de ST, portanto, ocorrem em razão da organização do trabalho, nela incluídos as condições ambientais, a gestão e o controle da produção. Tradicionalmente, essas questões são vistas como atribuições exclusivas do empregador, sem levar em conta a opinião de quem sabe dos aspectos objetivos e subjetivos envolvidos na realização das tarefas: o trabalhador. Ao contrário, ele é considerado um mero apêndice no processo produtivo.

Há uma profunda diferença entre trabalho prescrito (aquele que consta dos manuais) e trabalho real. Essa diferença exige do trabalhador o desenvolvimento de mecanismos “informais” para atingir os níveis de produção determinados pelo empregador, pois o meio ambiente de trabalho impõe limitações ao desenvolvimento das atividades laborais.
Os recursos utilizados pelo trabalhador para superar tais obstáculos requerem experiência e criatividade. Dejours afirma que “(…) o caminho a percorrer entre o prescrito e o real deve ser inventado ou descoberto, a cada vez, pelo sujeito que trabalha.” (Avaliação do Trabalho Submetida à Prova do Real).

O fato é que, no planejamento da organização do trabalho, não se leva em conta que ao empenhar sua força de trabalho na realização das tarefas, o trabalhador inescapavelmente envolve habilidades pessoais e subjetividade, rompendo a linha divisória entre as obrigações decorrentes do contrato de trabalho e da sua individualidade e as empresas rechaçam veementemente qualquer proposta de participação dele e de seus representantes no processo de organização do trabalho, argumentando que isso seria uma interferência indesejável na gestão.

Essa visão tem caráter eminentemente ideológico, pois para os patrões, eles – na condição de donos do capital, não só dos meios de produção propriamente ditos, como também da própria força de trabalho, pois pagam por ela – possuem a prerrogativa de determinar todos os aspectos do processo de produção.

Se isso é uma realidade no mundo do trabalho desde os primórdios da revolução industrial, passando pelo taylorismo, fordismo e mais contemporaneamente pelo toyotismo, acirra-se com a introdução das chamadas “modernas” técnicas de gestão empresarial, aprofundadas a partir da hegemonização do pensamento neoliberal. Essas técnicas nada mais são do que mecanismos de controle e aumento da produção e acarretam o assédio moral, as jornadas estafantes, o ritmo e a carga de trabalho excessivos.

Mas, certamente, a face mais cruel desses métodos, cada vez mais difundidos nas empresas, é o fato de promover a destruição dos laços de solidariedade, por meio de estabelecimento de metas e rankings de produção individuais, estimulando a competição entre colegas e transformando o sentido de equipe em individualismo, incutindo no jovem que chega ao mercado de trabalho a ideia de que para obter sucesso e ascensão na vida profissional terá de derrotar seus “concorrentes”, os próprios colegas de trabalho. Isso gera grande sofrimento e muitos acabam por questionar sua própria ética, mas a maioria acha tudo muito normal. A formação acadêmica para o trabalho e não, para a vida, já os prepara para isso.

As questões no campo da ST envolvem, portanto, elevado grau de complexidade por ter caráter cultural, ideológico e estrutural, resultando em um processo alienante em que os próprios trabalhadores, em geral, reproduzem tal ideologia, considerando natural o uso de determinados procedimentos por parte dos gestores como forma de garantir o nível de produtividade estabelecido que, de acordo com esse ponto de vista, é um “direito legítimo” do dono dos meios de produção. Marx e Engels, em “A Ideologia Alemã”, afirmam que “(…) as ideias dominantes são, em todos os tempos, as ideias da classe dominante”.

A reversão desse quadro exige uma tomada de posição por parte dos próprios trabalhadores, mas isso só é possível a partir da conscientização e da organização no local de trabalho – OLT. Essa é a principal atribuição das entidades sindicais: capacitar os trabalhadores para que possam entender e assumir seu papel na relação com a classe patronal e superar a alienação do trabalho, passando a fazer o enfrentamento para, finalmente, conquistar a condição de interferir na organização das tarefas e nos ambientes.

Esse, evidentemente, não é um processo fácil e passa, necessariamente, pelo acirramento dos conflitos na relação de emprego. O acirramento conduz ao confronto e tira os patrões e seus representantes da zona de conforto, obrigando-os a estabelecer o processo de negociação.

A história da organização dos trabalhadores no mundo todo e no Brasil não foi diferente. Em especial no século XX, está repleta de exemplos de conquistas de melhores condições de trabalho, sinônimo de saúde. A épica greve geral de 2017 é emblemática nesse aspecto.

Por outro lado, é um equívoco imaginar que se possa fazer luta sindical, único meio de avançar nas conquistas, abstraindo a dimensão político-ideológica da relação capital versus trabalho, porque falar em luta de classes seria algo anacrônico e inadequado para o “moderno” mundo do trabalho. Esse tipo de pensamento só interessa à classe patronal que, por meio do domínio ideológico e da alienação do trabalho, manipula e explora a força de trabalho, dispondo da vida e da individualidade das pessoas para muito além do previsto no contrato de trabalho.

E o trabalhador passa a ser chamado de “colaborador”, uma bela palavra que, de acordo com o dicionário Michaelis, da Língua Portuguesa, significa “quem trabalha em comum com outrem na mesma obra”. Que outra intenção poderia haver por traz do uso tão artificial dessa expressão que não fosse a de o seduzir, fazendo-o acreditar em uma suposta abolição da hierarquia na tentativa de envolvê-lo afetivamente com a empresa, como se eles patrão/chefe e empregado estivessem na mesma condição em relação ao processo produtivo? O trabalhador não é absolutamente um “colaborador”, ele é empregado. As tarefas que exerce são impostas em uma relação desigual, de exploração, e o produto do trabalho pertence ao dono da empresa, que paga a ele uma pequena parte do valor do fruto de seu trabalho.

Superar plenamente essa realidade, evidentemente, não será tarefa fácil e, lamentavelmente, não está ao alcance das mãos em um futuro breve. Contudo, ter a clareza de que a lógica do sistema é a exploração e o custo disso é o desgaste físico e mental, podendo levar à incapacidade e até mesmo à morte, é absolutamente necessário e urgente para que se possa, por meio da luta, estabelecer limites que garantam a preservação da higidez física e mental de quem trabalha e o respeito à vida particular e às relações sociais das pessoas. Isso é Saúde do Trabalhador.

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