Economia

Dívida pública: sempre cobrada, nunca discutida, jamais auditada (I/V)

Nota: este é o primeiro da série de cinco artigos abordando a dívida pública no Brasil.

O substantivo “dívida” associa-se ao que deve ser pago. Óbvio, não? A expressão lembra o financiamento de um bem durável, do imóvel adquirido, o crédito recebido para algum fim, o empréstimo. Não quitar a dívida, nem negociá-la, vai deixar o nome sujo, temor de muitos.

Por princípio, tem-se a dívida como contrapartida a um bem ou serviço.

Mas tal princípio vale, necessariamente, para dívida pública?
Diz Maria Lúcia Fatorelli, ex-auditora da Receita Federal do Brasil e Coordenadora da Associação Auditoria Cidadã da Dívida, que “os povos nunca foram informados sobre dívidas públicas que pagam através de seus orçamentos”. E acrescenta: “endividamento público não tem funcionado como instrumento de financiamento das necessidades coletivas. Há décadas vem operando como um mecanismo de transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado”

Orçamento da União
Talvez por representar esse mecanismo, a dívida brasileira é brasileiramente sagrada.
É comum nas análises do orçamento público, feitas por especialistas e não especialistas e reproduzidas como ciência em meios de comunicação hegemônicos, a máxima de que o Estado sempre gasta demais e, assim, gera déficits. E em que gasta demais? Com o funcionalismo e previdência, os culpados de sempre. E o que os déficits causam, segundo os analistas? Causam o afastamento de investidores ávidos por aplicar seu dinheiro no país. Seguindo a cantilena, dizem eles ser fundamental gerar superávits primários, denominação para a diferença entre o total das receitas e das despesas, desconsiderando-se, nas despesas, aquelas decorrentes do serviço da dívida pública.

Observe-se bem: diferença desconsiderando-se o serviço da dívida. Por quê? Porque qualquer coisa relacionada à dívida é tão sagrada que fica apartada das rubricas orçamentárias em discussão, embora esteja obrigatoriamente na peça

Se considerado o serviço da dívida e, além dele, a amortização – no caso, refinanciamento por meio da emissão de novos títulos para quitar títulos vencidos – a maior fatia do orçamento da União vai exatamente para credores da dívida. Em 2020, dos R$ 3,535 trilhões executados (pagos) no orçamento da União, R$ 1,381 trilhão, ou 39%, refere-se a juros e amortização da dívida pública. O dispêndio com Previdência social, com benefícios a 40 milhões de brasileiros, foi de R$ 719 bilhões, 20,3%, pouco mais que a metade destinada aos poucos credores. O Auxílio Emergencial temporário, consequência da tragédia sanitária, somou R$ 29,3 bilhões, 8,29% do gasto.

Gráfico – Execução orçamentária de 2020 – A partir de estudo da Auditoria Cidadã da Dívidaorçamentária.

Superavit alcançado, mas dívida crescente
Quando se menciona superavit primário, tem-se a impressão de que tal meta nunca foi alcançada. Impressão equivocada. Em todo o período de 2002 a 2014 o Tesouro Nacional registrou superavit primário, com variações do mínimo de 1,95% em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) em 2009, ao máximo de 3,74% do PIB em 2005. Nem por isso a dívida encolheu.

Relatório do Tesouro Nacional registra que a dívida brasileira em dezembro de 2020 era de R$ 5,009 trilhões, dos quais R$ 4,766 trilhões, 95,1% do total, classificada como interna (em moeda nacional, contraída junto a residentes no país) – e R$ 243,4 bilhões, 4,9%, externa (em outras moedas). Os números da Auditoria Cidadão são diferentes: para o mesmo mês, R$ 6,691 trilhões e 551,6 bilhões, respectivamente.

No próximo artigo, o porquê da diferença e quais são os grandes ganhadores com a dívida.

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