Corpo e mente

O legado dos negros sem alma

Por Célia Zingler, escritora, Diretora de Aposentadas, Aposentados e Previdência da APCEF/RS  e do Jurídico do Sindicato dos Bancários de Santa Cruz do Sul e Região

“Negra!

Negra sou

De hoje em diante não quero

alisar meu cabelo

Não quero

E vou rir daqueles,

que por evitar – segundo eles –

que por evitar-nos algum dissabor

Chamam aos negros de gente de cor

E de que cor!

NEGRA

E como soa lindo!

NEGRO

E que ritmo tem!

Negro Negro Negro Negro”

Fragmento da poesia Me gritaram Negra, de Victoria Santa Cruz, Peru 1922-2014.

Alimentaram uma nação com seu leite branco e seu sangue vermelho. Arrancados aos milhões da África, continente berço da Humanidade, com sua vegetação exuberante, o solo e subsolo cobiçados até hoje pelos mais ricos e poderosos do mundo. Encantando crianças, abriga os maiores e mais bonitos animais do Planeta: elefantes, zebras, macacos, hipopótamos, tigres, leões…

Construíram o Brasil e todo o Novo Mundo, onde europeus brancos e católicos implantaram o seu projeto de exploração continuada desde o final do século XV. Não bastava haver descoberto um continente maravilhoso, com povos, cultura e conhecimentos diferentes. Precisavam exterminar o povo nativo e comercializar seres humanos para transformá-los em escravos e ter sobre eles o direito de vida e morte. Afinal, não tinham alma!  Incorporados ao patrimônio com outros animais, uma simples mercadoria para comprar e vender. Sem direitos, nem para amamentar seus próprios filhos, pois seu leite, por ser tão bom, era primeiramente destinado aos filhos do dono dos seus corpos. Arrancados da terra, levados por mares longínquos para nunca mais poder voltar… Se fossem sem alma teriam sobrevivido a tudo isso e nos legado tanto?

A presença negra no parlamento brasileiro é recente. Em 1991, Abdias Nascimento é eleito Senador. Benedita da Silva, primeira Senadora negra, eleita em 1994, já fora Vereadora no Rio de Janeiro e também Deputada Constituinte. Ela é autora do projeto que inscreveu Zumbi dos Palmares, em 1997, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria,  no memorial  Panteão da Pátria e da Liberdade. E também da criação do 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, em referência à data da morte de Zumbi dos Palmares numa emboscada pelas tropas coloniais, em 1695. O Quilombo dos Palmares resistiu 100 anos ao sistema escravocrata e colonizador. Benedita, muito atuante, teve outras iniciativas importantes para dar voz e vez às pessoas negras, incluindo a obrigatoriedade do registro de etnia em documentos oficiais. Assim, hoje sabemos que 56,1% da população brasileira se reconhece como negra ou parda.

Lei de cotas, para alguns, soa como um deboche. Mas é o que está levando as pessoas negras a todos os lugares, muito devagar, por sinal.  A Lei de Cotas, de 2012, destina 50% das vagas das Universidades e Institutos Federais para alunos e alunas oriundas de escolas públicas e esta reserva de vagas dá acesso a jovens de baixa renda, negros, indígenas e pessoas com deficiência. O perfil dos universitários mudou, pois eram somente dois negros para cada cem alunos no início dos anos 2000. A partir de 2023, a presença de pessoas negras será de 25% no Senado e 26% na Câmara dos Deputados, ainda muito longe do percentual de 56,1% da população brasileira.

Nas categorias profissionais é a mesma coisa: são os que têm na média os menores salários e o maior percentual de desemprego, atingindo mais fortemente as mulheres. O legado escravocrata construiu uma sociedade estruturada no racismo e no patriarcado. Ocupando a base da pirâmide social, a mulher negra tem acesso aos salários mais baixos e possui menores índices de escolaridade, enquanto é vítima constante da violência. Dados oficiais conhecidos, a serem enfrentados com políticas públicas e investimentos prioritários.

A cultura negra está presente em todo o Brasil, a maior comunidade negra fora da África. A cultura e a inteligência que fez este povo resistir criou um legado infinito na religião, música, dança, alimentação, língua. A capoeira hoje está na classificação de autêntico esporte nacional.

Quilombos urbanos e rurais são alvo constante para tomada de suas terras e expulsar as comunidades que ali vivem de forma comunitária. A renomada escritora negra Conceição Evaristo, cuja obra recentemente foi proibida em escola da Bahia e a professora que indicou o livro afastada da turma em que dava aula, nos ensina:

É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: a liberdade é uma luta constante.

Está na hora do Brasil mostrar a sua verdadeira cara!

Qual é a sua reação?

Animado(a)
0
Gostei
0
Apaixonado
0
Não gostei
0
Bobo(a)
0

Você pode gostar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *