Movimento

O racismo não é racional e nem nacional, é sim, colonial: uma lição repercutida pelos Racionais MC’s

Era apenas mais um jogo de futebol pela Copa Libertadores da América Sub-20, sediada no Paraguai – Palmeiras x Cerro Portenho – na data de 06/03/2025, um evento sem maior visibilidade. Isto, até o jovem jogador brasileiro, Luighi, se tornar mais uma vítima de racismo no futebol, a exemplo do que também ocorre frequentemente com o brasileiro Vini Júnior na Espanha e em tantos outros estádios de diversos países.

A firme reação de Luighi na entrevista pós-jogo escancarou ao mundo a grotesca situação de indiferença com que o crime foi tratado pelo árbitro do jogo, jogadores do Cerro Portenho, policiais paraguaios e até pela mídia oficial que cobria o jogo.

Indignado e emocionado, Luighi cobrou o jornalista que o entrevistava: “Você não vai perguntar sobre o racismo que eu acabei de sofrer?”. Daí para frente, o caso ganhou o mundo do futebol e gerou múltiplas manifestações de solidariedade ao jovem jogador, incluindo a exigência de imediata punição aos culpados, até mesmo ao clube paraguaio, cuja direção minimizou o ocorrido e ainda tentou transformar a vítima em culpado.

Coincidentemente, na mesma data, os Racionais MC”s, grupo de rap mais influente do Brasil, um símbolo de luta contra o racismo e a exclusão social, recebiam o título de Doutor Honoris Causa no centro de convenções da UNICAMP, honraria concedida ao grupo por iniciativa do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp com o apoio do movimento estudantil, Movimento Negro e servidores do IFCH.

Em discursos emocionados e carregados de afirmação da identidade do grupo e da sua mensagem anti-racista e anti-exclusão social, Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock relembraram a sua trajetória de músicos oriundos da periferia que se juntaram com a proposta de fazer com que a voz da resistência ao supremacismo e à discriminação racial fosse ouvida pelos seus iguais e por toda a sociedade brasileira.

O fato desses acontecimentos que têm o racismo como eixo – mas com significados opostos – ocorrerem na mesma data, com certeza não deixa de ser uma emblemática simbologia do confronto entre duas forças poderosas que se chocam nos nossos dias.

De um lado, aqueles que lutam para afirmar a diversidade, a igualdade de oportunidades, o respeito às identidades culturais, à dignidade do ser humano e a democracia como linha condutora da ação política e, de outro, as mentalidades neocoloniais que cada vez mais se aferram a valores regressistas, retrógrados e carregados de preconceito, ódio às minorias, patriarcalismo, supremacismo branco, racismo estrutural e autoritarismo político.

Neste contexto, a homenagem de uma instituição de tão alto prestígio como a UNICAMP ao grupo Racionais MC’s tem um significado histórico insofismável, visto que os músicos representam a apropriação da arte como instrumento de luta por parte de uma parcela da população brasileira historicamente discriminada, oprimida e explorada, luta que, na verdade, é de todos que ainda não desistiram de viver em mundo mais digno.

Como disse Mano Brown em seu discurso: “Difícil é se fazer entender, às vezes, mas se manter leal, sempre, pois a causa é maior do que nós e, depois de nós, outros virão!”.

Não há dúvida de que as mensagens emanadas pelas músicas e letras do grupo são um poderoso grito que se junta a outras lutas históricas de célebres lideranças mundiais que mostraram a todos como, apesar de tudo, é possível enfrentar o racismo e o supremacismo com potência, tais como, Nelson Mandela, Malcon X, Ghandi, Martin Luther King, James Brown, Rosa Parks, Nina Simone, Elizabeth Eckford, Alice Walker e tanto(a)s outro(a)s.

Os Racionais MC’s surgiram na década de 80 e as poderosas mensagens das suas músicas ultrapassam o mero protesto, pois são profundas, instigantes, reflexivas e deixam marcas em todos aqueles que se dispõem a conhecê-las.

Um exemplo disso, é a música “Capítulo 4, Versículo 3”, que integra o álbum mais famoso do grupo, “Sobrevivendo no inferno”:

“Eu tenho uma missão e não vou parar Meu estilo é pesado e faz tremer o chão

Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além

E tem disposição pro mal e pro bem

 Talvez eu seja um sádico, ou um anjo Um mágico, o juiz ou réu

O bandido do céu, malandro ou otário

Padre sanguinário, franco atirador se for necessário Revolucionário, insano ou marginal Antigo e moderno, imortal.”

Nada mais atual! É simplesmente impossível não nos questionarmos sobre até que ponto não somos omissos ou até mesmo coniventes com o racismo estrutural que sufoca, agride e esmaga aqueles que são obrigados a travar uma luta diária e insana pela sobrevivência e pela dignidade, apenas porque nasceram negros na periferia.

Para os que negam a existência do racismo no Brasil, basta apresentar números: apenas 10% dos alunos das vinte melhores escolas privadas do Brasil são negros. Mesmo com estudo e qualificação, as dificuldades persistem e negros com ensino superior têm mais dificuldade em comparação com os brancos para encontrar vagas qualificadas compatíveis com o grau de instrução.

As mortes de negros por violência física aumentaram 59% em oito anos [2011 – 2018], sendo 45 vezes maior em comparação à taxa medida em relação a brancos no mesmo período, de acordo com recentes dados disponíveis no DataSUS.

Nas 23 grandes empresas nacionais e multinacionais [no Brasil], os negros ocupam apenas 6,3% dos cargos de gerência. Nas vagas executivas, o número é ainda menor, e as pessoas negras ocupam apenas 4,7% delas, de acordo com pesquisa divulgada pela Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial.

Sobre essa realidade, disse significativamente o racional Ice Blue durante a cerimônia: “É uma luta em cima de outra luta…era difícil, você tá lá com dez mil pretos e, conseguir como, inserir ideologia nesses pretos, sendo que eles tavam indo prá lá

justamente para esquecer essas coisas… eu demorei para entender que ali tinha outra construção”.

Já o Racional Edi Rock, citou a música de 1992, “Voz ativa”, que ele acredita ter sido o gatilho para a magnífica trajetória do grupo:

“Eu tenho algo a dizer E explicar pra você Mas não garanto porém

Que engraçado eu serei dessa vez Para os manos daqui!

Para os manos de lá! (…) Não proponho ódio, porém

Acho incrível que o nosso conformismo Já esteja nesse nível

Mas Racionais resistente, nunca iguais Afrodinamicamente mantendo nossa honra viva Sabedoria de rua

O RAP mais expressiva (E aí)

A juventude negra agora tem a voz ativa (Pode crer)”

Como finalizou Edi: a caminhada continua!.

Infelizmente, não existe trégua e nem porto seguro na luta contra o racismo e suas ideologias irmãs, assim como também não há terra à vista para um mundo comprometido com as causas igualitárias, mas o simples fato de um grupo de músicos negros tão potente e talentoso conseguir levar a sua mensagem encharcada de arte para as ruas e, agora, para a Academia, é um magnífico auspício para acreditarmos que, talvez, um dia, o caso do jogador Luighi possa vir a ser apenas uma bisonha anomalia nos estádios de futebol de todo o mundo.

É necessário sempre acreditar que o sonho é possível Que o céu é o limite

e você, truta, é imbatível! O hoje é real

É a realidade que você pode interferir As oportunidades de mudança

Tá no presente

Não espere o futuro mudar sua vida (A vida é desafio – Racionais MC´s)

[Jorge Marçal – Ex-diretor da APCEF/SP e da FENAE]

Qual é a sua reação?

Animado(a)
0
Gostei
6
Apaixonado
0
Não gostei
0
Bobo(a)
0

Você pode gostar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais em:Movimento