Gabriel Garcia Marques, o “Gabo”, em um de seus mais famosos romances, antecipa, nos primeiros parágrafos da obra, a morte do protagonista, chamando-a, por isso, “Crônica de Uma Morte Anunciada”. Não nos alegra a oportunidade de utilizar metaforicamente esse título para nos referir ao estágio a que chegou o plano de saúde dos empregados Caixa neste final de 2023.
Outro fato a lamentar é o acerto na previsão feita por nós do coletivo #AgoraÉParaTodos, em 2018, quando, cedendo à pressão da Caixa, os “representantes” na mesa de negociação indicados pela Contraf, aceitaram submissamente as imposições, entre outras, do teto de 6,5% da soma da folha de pagamento dos empregados com o total de proventos Funcef, excluída a parcela referente ao INSS, como limite da contribuição anual da empregadora para o custeio do Saúde Caixa e a discriminação com os admitidos a partir de 01/09/2018, proibindo-os de ingressar no plano.
O porquê do nosso alerta àquela altura, já exaustivamente debatido neste e em outros espaços, era o potencial contido em tais medidas de desestruturar uma das nossas mais importantes conquistas, seja do ponto de vista financeiro, com a implantação do teto de contribuição da patrocinadora ou com a descaracterização de um de seus princípios fundamentais, a solidariedade, excluindo parcela significativa dos colegas ingressados na empresa a partir da assinatura daquele péssimo acordo coletivo de trabalho (ACT), principalmente se considerarmos o fato de a maioria deles terem entrado na cota legal de pessoas com deficiência (PcD).
Nos anos seguintes, nas renovações do ACT, – apesar de, em 2020, ter sido admitida a adesão dos empregados pós 31/08/2018 ao plano, essa foi uma conquista incompleta, uma vez negada a eles, de forma injusta e discriminatória, a manutenção do direito na aposentadoria – as restrições não só foram mantidas, como aprofundadas, tendo como parâmetro as regras da extinta resolução nº 23 da Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União (CGPAR), tornando inócua para os titulares do Saúde Caixa a vitoriosa mobilização dos trabalhadores das estatais, com destacada participação dos empregados da Caixa, principalmente aposentados, pela aprovação do Projeto de Decreto Legislativo PDL 956/2018 de autoria da deputada Érika Kokay, o qual revogou a mencionada resolução.
Dessa forma, assistimos de lá para cá, o avanço do processo de desmonte do plano, com os seguidos déficits anuais (R$ 133 milhões em 2021, R$ 216 milhões em 2022, projeções feitas pela Caixa para 2023 de R$ 420 milhões e para 2024 de R$ 660 milhões), exigindo altos reajustes nos itens de custeio para os empregados agravado pela inclusão das despesas não assistenciais, anteriormente, no modelo 70/30, custeadas exclusivamente pela Caixa; o acréscimo da 13ª mensalidade; o fim da cobrança pelo grupo familiar, que, na atual proposta, pode chegar a um reajuste de 79% para titulares com 1 e 62% para os com 2 dependentes e a comprometer até 7% da remuneração desses empregados; para citar as alterações mais impactantes.
A Contraf e os sindicatos ligados a ela, bem como a Fenae e a maioria das Apcefs, em todo o país, ao invés de sinalizarem claramente à direção da Caixa não admitir tais ataques e ao mesmo tempo bem informando e mobilizando os empregados, preparando-os para um processo de resistência, que, diga-se, a cada ano se torna mais difícil, optou por defender em todas as oportunidades propostas que somente favoreceram a empresa.
Apesar disso, os empregados aos poucos foram entendendo a gravidade da situação e percebendo os riscos concretos representados por essas alterações a partir do amplo debate estabelecido pelos movimentos de oposição, em que pese o terrorismo disseminado por essas mesmas entidades, resultando no atual embaraço e impedindo, até o momento pelo menos, a consolidação de mais um passo na desconstrução do direito à assistência à saúde, com o grande número de votos contrários nas assembleias realizadas por todas as bases entre os dias 5 e 9 deste mês – talvez a maioria, pois os dados são divulgados de maneira propositalmente confusa e não confiável.
Comunicado oficial da Contraf (nº 17223) às entidades filiadas previa a assinatura do aditivo com a Caixa no último dia 22/12, o qual teria validade a partir de 01/01/2024 apenas para as bases em que houve aceitação das novas regras, mas até onde se pode identificar isso não teria ocorrido, pois não há, até o momento, qualquer registro nesse sentido nos sítios da Internet das entidades. Não é de se estranhar face aos resultados divididos em diversos locais e em muitos amplamente desfavoráveis à proposta gerando grande insegurança tanto do ponto de vista político como jurídico às entidades e à própria empresa.
Em ato desesperado, a Contraf, mais uma vez em tom ameaçador, está orientando as bases contrárias à celebração do aditivo a refazerem suas assembleias a fim de reverter os resultados, sob o argumento de se tratar de mal menor, pois, segundo ela, a ausência do instrumento facultaria à Caixa decidir unilateralmente sobre os destinos do plano.
Essa alegação, no entanto, é, para dizer o mínimo, controversa por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, não seria razoável imaginar que a empresa não estaria sujeita a uma avalanche de ações individuais ou coletivas ao, na ausência de instrumento jurídico adequado, impor aumento de custo tão expressivo a empregados cujas entidades não foram autorizadas a aceitar em nome de seus representados. Em segundo, considerar o aditivo ratificado na cláusula 32 do ACT 2022/2024 valendo apenas até 31/12/2023 é uma interpretação bastante dúbia, pois como foi revalidado na assinatura do último ACT, em 2022, passaria a vigorar exatamente na mesma data deste último, uma vez não haver nenhuma ressalva em sentido contrário e, portanto, nas bases que eventualmente não venham assinar novo aditivo, em razão de não terem sido autorizadas por suas assembleias, o atual ainda estaria em vigor até 31/08/2024.
Para tornar ainda mais complexa a situação, decorre da segunda problemática, uma outra, a Caixa poderia aplicar dois modelos diferentes de um mesmo plano para grupos distintos de empregados? Ou seja, uma forma para as bases cuja proposta de reajuste nas mensalidades dos dependentes foi aprovada e outra para as bases das entidades não autorizadas a assinar novo aditivo? Lembrando que não há precedentes nesse sentido e, portanto, resta uma última questão a ser enfrentada: há segurança jurídica para tanto?
Mas, voltando ao início, como na obra literária de Garcia Marques, esse imbróglio era perfeitamente previsível. De novo, lamentamos dizer: falta de aviso não foi!